23 Agosto 2013
"Francisco é o primeiro papa bolivariano da história. A sua visão geopolítica é a de Simón Bolívar, o Libertador: unir a América Latina para torná-la um sujeito econômico autônomo e um ator político independente no cenário mundial: a Pátria Grande".
A reportagem é de Lucio Caracciolo, publicada no jornal La Repubblica, 20-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Assim fala Francisco Mele, psicoterapeuta, professor em diversas universidades italianas e latino-americanas, sucessor de Jorge Mario Bergoglio como professor de psicologia na Universidad del Salvador, em Buenos Aires, um dos centros de formação da classe dirigente argentina administrado pelos jesuítas.
Mele conhece bem Bergoglio, o seu percurso teológico e cultural, as suas paixões e as suas qualidades políticas. Sobre isso e sobre muito mais, ele vai falar no dia 26 de setembro, no Festival de Todi, que, neste ano, ao voltar à direção de Silvano Espada, oferece não apenas teatro e arte de qualidade, mas também noites de diálogo e de aprofundamento político-cultural de grande interesse.
Pedimos a Mele que esboçasse um perfil geopolítico-teológico do Papa Francisco.
Eis a entrevista.
Todos falam de Francisco como o "papa argentino". Mas você sugere que o horizonte geopolítico dele é muito mais amplo: os Estados Unidos da América Latina, a utopia de Bolívar recentemente reencarnada por Hugo Chávez.
Esse papa representa a voz da América Latina. Não é apenas um patriota argentino, talvez um peronista. Como ele mesmo gosta de dizer, ele fala por todos os povos que se estabeleceram entre Rio Grande e Tierra del Fuego. Historicamente unidos pela língua espanhola e pela religião católica. É a Hispano-América, que, com a adição do Brasil lusófono, se torna a América Latina. Não por acaso, a sua viagem ao Brasil foi um sucesso: as pessoas sentiam que aquele pastor vestido de branco era um dos seus, um latino-americano. Senão, um argentino nunca teria sido aclamado pelos brasileiros, ao contrário...
O último papa a ter um projeto geopolítico foi João Paulo II, que quis e soube reunificar a Europa para que voltasse a "respirar com os dois pulmões". Francisco, portanto, também tem um projeto?
Certamente. O projeto geopolítico ao qual se volta a simpatia do Papa Francisco é o de Bolívar, mas também o de Artigas, de San Martín e de tantos outros patriotas latino-americanos: a unidade da América do Sul como contrapeso aos Estados Unidos, a superpotência que representa os interesses do Norte. Bergoglio disse e escreveu em várias ocasiões sobre a unidade latino-americana. Por exemplo, referindo-se ao livro do secretário da Pontifícia Comissão para a América Latina, Guzmán Carriquiry, sobre a América Latina do século XXI, publicado em 2011 por ocasião do bicentenário das independências dos países latino-americanos. Sobre a atualidade da integração latino-americana, dentre outras coisas, a Conferência Episcopal Argentina também interveio em 2008, inspirada pelo próprio bispo de Buenos Aires. Outro interlocutor de Bergoglio nessa questão foi a filósofo e historiador uruguaio Alberto Methol Ferré. Em certo sentido, os jesuítas já deram o primeiro passo para a integração continental, quando unificaram as suas províncias da Argentina e do Uruguai.
Qual é a substância sociopolítica e teológica desse projeto?
É a teologia do povo. Ela é entendida como superação da teologia da libertação, embora não renegando-a. Os teólogos da libertação se inspiravam em uma interpretação sócio-estrutural de corte marxista. Os teólogos do povo, inspirando-se na doutrina social da Igreja, nos documentos do episcopado latino-americano de Medellín (1968), Puebla (1979) e Aparecida (2007), e em um filão histórico-cultural que destacou, dentre outros, Lucio Gera e Juan Carlos Scannone, não acreditam nas classes, mas sim no povo. Com uma atenção especial aos pobres, que na América Latina ainda são muitos, demais. Bergoglio quer uma Igreja "dos pobres para os pobres", inclinada ao lado do povo sofredor, humilhado, traído pelas elites e exposto às insídias do individualismo hedonista libertário, do capitalismo selvagem e da globalização imperialista. Impressiona-lhe a pessoa que vive em íntima união com os elementos primordiais da natureza: não nos esqueçamos de que, no tempo dos conquistadores, foram os jesuítas que defenderam que os índios também tinham uma alma.
Além disso, na teologia da Bergoglio, encontramos ênfases que derivam do estudo da filosofia de Romano Guardini e da obra literária de Fiódor Dostoévski – penso na aversão aos astutos e aos prepotentes. Para o papa, vale a ideia de que a doutrina nos ensina em quem acreditar, mas o povo nos ensina como acreditar. Ele teve uma influência muito importante do seu e meu mestre, Ismael Quiles, historiador da filosofia, que tinha aberto a universidade dos jesuítas ao estudo do budismo zen, da ioga, do respeito pelos outras culturas e pelas diversas religiões. As referências do Papa Francisco aos "irmãos muçulmanos" ou o respeito pelos "irmãos pais judeus" também são fruto dessa lição.
Bolivarianismo e teologia do povo como receita para recuperar a identidade latino-americana em nome do catolicismo, contra a penetração das seitas protestantes?
Exatamente isso. Bergoglio, assim como toda a Igreja Católica, pretende reagir à difusão do cristianismo "faça-você-mesmo" proposto pelas seitas protestantes, que, nos anos 1980, foram apoiadas por ricos financiamentos norte-americanos também para combater a teologia da libertação e que hoje conquistaram boa parte dos crentes em toda a América Latina e além. O Papa Francisco critica fortemente as seitas, a Nova Era, as religiões adocicadas, relativistas.
Esse papa, assim como você, ensinaram psicologia. Matéria historicamente complicada para o clero.
Uma vez, a Igreja pensava que a ciência da alma fosse a peste dos conventos, porque os sacerdotes que faziam análise acabavam muitas vezes deixando o ministério. Hoje, o ar é diferente. A Igreja reabilitou a psicanálise, entendida como terapia da palavra. Entre o cristianismo e a psicanálise, encontramos pontos em comum: sobretudo, o valor fundamental da palavra. A palavra tem a força de tornar as coisas escravas ou livres. No princípio, era o Verbo, mas no fim ainda será o Verbo. Agora, os seminaristas são incentivados a passar por um período de análise para verificar o fundamento da própria vocação. Além disso, se a pessoa perde a fé depois da análise, isso significa que ela realmente não a tinha.
Qual é o perfil psicológico de Bergoglio como chefe da Igreja?
Francisco é um grande estrategista. Ele me lembra Napoleão. Assim como o imperador estava perto dos seus soldados, assim também esse papa gosta de se misturar com o seu povo e com os seus padres, para encorajá-los e incentivá-los à missão pastoral. E também é um papa que pensa e age rapidamente. Não sabemos que surpresas ele nos reservará para amanhã. Deus nunca sabe o que pensa um jesuíta.
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Bergoglio, herdeiro de Simón Bolivar. Entrevista com Francisco Mele - Instituto Humanitas Unisinos - IHU